quarta-feira, 3 de maio de 2017

Cybernary

Cybernary

Todos sabem que urnas eletrônicas não são à prova de violações, mas isso não tem importância pois é o próprio governo quem as viola para escolher o presidente que deve assumir o novo mandato. Sejam as falhas de segurança nos sistemas eletrônicos das urnas, os adversários que afirmam que as urnas foram violadas em prol de determinado candidato, ou o próprio partido oposto que insiste em dizer que as eleições foram manipuladas, mas nada disso importa. O que realmente importa é a opinião pública, e é o povo quem tem a verdadeira força sobre o governo. Ou ao menos é o que o povo acha, com o governo mantendo as aparências de que tudo está bem, que seu novo governante é alguém íntegro no qual se deve confiar e assim manter a massa adormecida, anestesiada, sem se preocupar em como e por que são manipuladas, pois eles não sabem que estão.
Foi por causa da opinião pública que Todd fora contratado. Eles não disseram quem eles eram, de onde vieram e qual a finalidade de tudo aquilo. Todd só sabia que eram dois homens, com ar de militares, vestindo ternos e gravatas pretos e óculos escuros, estavam contratando-o para evitar que um grupo internacional de hackers divulgasse emails comprometedores do candidato e futuro presidente Howard Shepard, o novo “Queridinho da América”.
Jovem, no alto de seus trinta e cinco anos, perdendo em idade somente para Kennedy quando subiu à presidência, Howard é um jovem pai de família que conquistou o sucesso profissional com negócios de seguros e tecnologia limpa. Pai de dois jovens filhos e casado desde os vinte e cinco anos, ele leva a fama de um pai exemplar e um modelo a ser seguido no mundo dos negócios. Mas o que poucos sabem, na verdade quase ninguém, são informações obscuras, de atos cometidos pelo jovem Howard até pouco depois de seu casamento. Acontecimentos que, se caírem no conhecimento público, acabariam com a vida profissional e pessoal do jovem futuro presidente.
Estas informações foram roubadas por hackers, que conseguiram se infiltrar no banco de dados de classificação super sigilosa do governo e ameaçam colocar tudo na internet, a fim de abalar e destruir a imagem do candidato. Mas você se pergunta, por que o governo faria de tudo para manter a imagem de um candidato a presidente se nem mesmo começaram as eleições? Simples! O primeiro motivo é que há uma tradição “não escrita” no governo em que os presidentes representantes de cada partido intercalam o poder, ou seja, nunca um candidato republicano sucede um presidente republicano, assim como um candidato democrata nunca sucede outro democrata. A intercalação de mandatos entre os partidos é uma lei velada. O segundo motivo, e certamente o mais importante, eu particularmente não sei, mas sei que ele está entre os dados descobertos pelos hackers e com certeza beneficiará o governo. Todd, contudo, não quer saber os motivos. Ele só aceitou este trabalho pela quantia milionária que lhe foi prometida.
Semanas se passaram desde que o departamento de segurança do governo houvesse descoberto que as informações foram roubadas, até o dia do primeiro contato dos hackers, exigindo uma grande quantia para que as informações não fossem divulgadas. Todd fora contratado exatamente mesmo dia em que o roubo foi descoberto, dando a ele uma margem de  algumas semanas para investigar e descobrir um jeito de impedir que os hackers divulgassem as informações. Ele conseguiu, e seu plano era relativamente simples.
Todd, com a ajuda de um pequeno destacamento da inteligência do governo, conseguiu triangular a área onde um dos hackers se localizava. Grande parte do trabalho seria fácil, sentado na frente de um computador, invadindo servidores e programando softwares de busca e eliminação de arquivos em servidores e máquinas. A parte difícil era invadir fisicamente o computador utilizado para o roubo das informações. Tecnicamente, Todd deveria invadir o porão da casa da mãe do nerd gordo que achou que ganharia um bom dinheiro extra fazendo um trabalho simples de roubo de documentos governamentais para um grupo de cyberterroristas. Antes fosse só invadir tal porão! A entrada da casa foi fácil, “coincidindo” meticulosamente com o horário do culto da igreja da dona da casa. Todd só não contava com a posse ilegal de uma pistola magnum modelo 2020 de Wilburn, o hacker que curiosamente batia com a imagem mental estereotipada que Todd lhe havia dado. Todd fora proibido por seus contratantes de assassinar o hacker, o que para ele foi um alívio pois nunca havia matado ninguém. Para sua segurança pessoal, os seus contratantes lhe emprestaram uma arma não letal, com um projétil em forma de pequeno dardo que, ao atingir o alvo, libera constantes choques elétricos, impedindo-o de se movimentar até que o dardo seja removido ou até sua bateria terminar, o que não aconteceria dentro de muitas horas.
Os dois disparos dados por Wilburn atingiram o braço eletrônico de Todd, avariando-o levemente, causando apenas algumas falhas em componentes de certas funcionalidades mas, o mais importante, salvando sua vida. Já Todd fez bom proveito de seu único disparo do dardo-taser para que o imenso hacker permanecesse no chão, como se estivesse convulsionando em tempos de cinco em cinco segundos.
O computador de Wilburn, ou ao menos o que certamente teria sido utilizado para o roubo dentre os quatro que se espalhavavam pela grande mesa, era um modelo antigo da Apple de tubo, modificado para um sistema operacional opensource, mais fácil de se invadir outros sistemas e mais difícil de ser invadido, dependendo das habilidades do programador.
Do pulso de Todd saiu uma conexão USB, que foi conectada ao computador e automaticamente passou a rodar o software criado excepcionalmente para essa ocasião. Em pucos minutos o software encontrou os arquivos, agrupando todas as cópias em um único disco rígido e escaneando todas as transferências de dados que correspondessem aos tamanhos dos arquivos secretos. Ao enviar uma mensagem previamente programada em nome de Wilbur, ou FunyFace, como ele era conhecido na internet, uma cópia do software seria baixado junto com os cookies da página de email nos computadores daqueles que recebessem a mensagem, infiltrar-se no sistema operacional e, novamente, agrupar os arquivos semelhantes aos dados roubados, escanear e enviar mensagens para todos os contatos que receberam arquivos semelhantes. Depois que os dados foram agrupados, Todd pegou um flashdrive vermelho barato da mesa, inseriu-o na entrada do Apple, formatou-o, copiou todos os dados e em seguida deu procedimento à programação do software, que era superaquecer o disco rígido até que ele queimasse.
Todd esperou por mais algumas doses de choque no hacker até que ele estivesse grogue, para remover o dardo e fugir da casa. Wilburn permaneceu deitado por muito tempo após Todd ir embora.
De volta em casa, Todd apagou todos os dados de seu computador que o ligassem ao seus contratantes e aguardou que eles entrassem em contato, assim como constava em seu contrato verbal. A ligação mental recebida pelo implante no cérebro de Todd informava um contato desconhecido. A voz modificada eletronicamente informava o local de encontro, no píer abandonado da cidade velha.
No píer, Todd aguardava já a quase uma hora. Era uma fria meia noite quando o carro sedan preto com parachoques e parabrisas cromados se aproximou dele, parou à sua frente e abriu a janela do passageiro. Da escuridão de dentro do carro saiu uma mão, vestindo uma luva negra, segurando um envelope. Todd pegou o envelope e guardou no bolso, enquanto do outro bolso, retirava outro envelope amassado. De dentro do envelope amassado, ele retirou e mostrou um flashdrive cromado.
“Está tudo aqui”
“Precisamos confirmar?”
“Só se vocês quiserem perder tempo”
A mão enluvada pegou o flashdrive. Todd estendeu também o revolver com a bala-taser, que foi também recolhida ligeiramente, e o carro arrancou cantando pneu.
De volta em casa, Todd abriu o envelope que havia recebido. Números e senhas de diversas contas internacionais e valores com cifrões ao lado de cada um dos números. No internet banking de uma das contas, lá estava o valor exato discriminado no papel: duzentos mil dólares. Uma pequena parte do total que constava descrito no envelope.
Todd lidava com trambiqueiros de todos os tipos e sabia que o governo era só mais um deles. Não é à toa que Todd era o melhor Cyber Mercenário do mundo.
Naquela noite ele não estava com sono, portanto, não lhe faria nenhum mal conferir conta por conta, confirmando os depósitos, nervoso pelo perigo que correu, mas relaxando com o manusear da mão esquerda com um flashdrive vermelho barato.

Corpo Seco

Corpo Seco

Por mais que eu continue a me medicar e assiduamente frequentar meu psiquiatra buscando exorcizar os demônios que me atormentam dia e noite, jamais esquecerei o que passei durante minhas investigações naquela remota cidade no interior de Minas Gerais. Mesmo mantendo minhas forças psicológicas para buscar seguir minha vida na força policial, fui forçado a deixar de lado a investigação forense e passei a trabalhar no escritório em serviço puramente administrativo. Manter minha mente ocupada, ao invés da indicação de meu psicólogo, na época do fatídico acontecimento, de aposentar-me por invalidez - o que não era uma realidade pois, mesmo tomando remédios contra ansiedade, jamais me tornei um inválido físico ou mental - foi a melhor saída para superar o horror que eu havia passado. Tudo aconteceu em um abafado verão de 1952, no recém fundado município de Santa Vitória, interior de Minas Gerais.
Meu superior, Capitão Siqueira, designou-me para uma investigação de um possível assassinato. De acordo com as autoridades locais, um corpo ainda não identificado havia sido encontrado em uma estrada, em meio a algumas fazendas, em situação deveras suspeitas, para não constar nos autos, bizarra. De pronto, dois dias após o corpo ter sido encontrado, fiz a viagem de praticamente um dia inteiro até o município, sendo recebido pelo delegado José Pereira e por seu assistente, o cabo Luis Magalhães, que me levaram ao hotel em que eu ficaria hospedado durante o período de investigação. Como cheguei ao final da tarde de um dia quente e abafado, fatigado pela longa e poeirenta viagem, aproveitei o que me restara do dia e da noite inteira para descansar e estar pronto física e psicologicamente para iniciar as investigações ao amanhecer.
Pela manhã, ao deixarmos a delegacia, o delegado Pereira me conduziu, a meu pedido, primeiramente ao local onde o corpo fora encontrado. Com pouquíssimas construções de arquitetura que remetem o início do século XX, eram notadas algumas casas novas construídas a algumas quadras de distância da prefeitura e da igreja da Matriz, alguns dos prédios mais antigos da cidade. Como carona da viatura conduzida pelo delegado, observei que em menos de dois minutos já encontrávamos na “área rural” do minúsculo município. Grandes extensões de campos verde-claros tornando-se marrons, alguns por estarem as plantas já ressequidas pela estação e a estiagem, outras de terra arada pronta para a plantação de alimentos estivais, se estendiam pelo horizonte próximo, nas inúmeras colinas que circundam a cidade. Casas eram avistadas, isoladas entre si por dezenas ou centenas de metros de campos, capêras e florestas. A viatura levantava alto atrás de si a poeira seca da estrada de chão batido. Em alguns minutos encontrávamos no local onde o corpo fora encontrado: uma curva cercada de um aglomerado de árvores densas entre duas propriedades que formavam, na estrada, um túnel levemente escurecido, com as copas ralas da vegetação. Ali o delegado relatou-me os acontecimentos.
“O caseiro Josefino dos Santos relatou que saiu às quatro da manhã de sua residência em direção à casa do fazendeiro Romualdo Cardoso, dono de uma fazenda de dez hectares, a cerca de dois quilômetros daqui. Ele estava em sua charrete, iluminando o caminho com seu lampião, quando viu alguém deitado na estrada, bem aqui nesse ponto, onde a curva é mais acentuada. Ao chegar perto, não só notou que os braços do corpo, deitado de bruços, estava enrugado e aparentemente seco, como também ouviu um farfalhar na mata ao lado da estrada, aqui, a quatro metros do corpo.
Josefino desceu da charrete empunhando na mão esquerda seu lampião e na direita o seu revólver, e caminhou lentamente em direção da mata, sem ouvir mais nenhum som. Voltou-se ao corpo e viu que se tratava de uma mulher, com um vestido vermelho xadrez longo até abaixo dos joelhos e cabelos compridos loiros claros. Ele disse que quando se aproximou, se assustou com o que viu, subiu correndo na charrete, deu meia volta e partiu para a delegacia. Como estava fechada, ele foi até minha casa e disse que o Corpo Seco atacou alguém.”
Aquele nome não me dizia nada na época. Corpo seco? Seria essa mais uma das lendas contadas pelos povos mais antigos e sem instrução das cidades interioranas, assim como a Mula Sem Cabeça ou o Boitatá? Quando perguntei ao delegado o que era o Corpo Seco, ele engoliu seco, suspirou profundamente e me respondeu que me levaria até alguém que poderia contar melhor essa história.
Aproveitei a próxima hora para tirar minhas conclusões do acontecimento, baseado principalmente nas descrições do delegado, pois todas as marcas, pegadas ou qualquer outra informação que poderia estar impressa naquele chão já a muito havia se apagado com as pegadas de pessoas, cavalos e rastros de carroças e carros que passaram por ali nos últimos três dias. Fizemos então nosso caminho de volta, agora para a clínica da cidade. Clínica, pois o pequeno município de Santa Vitória ainda não possuia um hospital, sendo recebidos todos os doentes e defuntos para serem examinados ali, naquela pequena casa relativamente bem equipada para ser um centro clínico bom o bastante para uma cidade daquele porte.
Fomos recebidos pelo Doutor Emanoel Fraga, o clínico geral da cidade e que, segundo ele, pela primeira vez na curta história do município, havia feito uma autópsia. Junto do doutor, estava o assistente do delegado, o cabo Magalhães, que nos informou que o corpo poderia ter sido identificado.
Os rumores de um ataque do Corpo Seco a uma mulher correram pela comunidade, levando até a delegacia um casal que dizia que sua filha havia desaparecido já há quatro dias. Atendidos pelo cabo Magalhães, Douglas dos Santos e Elizete Farias dos Santos foram instruídos a irem até a clínica para efetuar o reconhecimento do corpo. O casal chegou pouco depois de nós. Fomos todos levados pelo doutor Emanoel a uma pequena sala que, segundo o próprio médico, havia sido adaptada para ser um necrotério improvisado para receber o primeiro caso de assassinato da cidade. Ao entrarmos, o cheiro forte de formol era capaz de irritar o olfato de qualquer um que não estivesse acostumado com tal odor.
A pequena sala era suprida com algumas estantes, armários e prateleiras cheios de vidros, ferramentas e equipamentos cirúrgicos. No centro havia uma mesa e o que certamente seria o corpo, coberto por um lençol branco. Nos aproximamos, ao que o Dr. Emanoel descobriu o rosto do defunto. A senhora Elizete desatou a chorar, com um desespero que só uma mãe que acaba de descobrir a perda da filha pode sentir. Ela e o senhor Douglas abraçaram-se fortemente e, após confirmar que ali jazia sua filha Delizete, foram conduzidos pelo cabo para a recepção da clínica, deixando-nos livres para examinarmos minuciosamente o corpo.
Não acreditei que aquele corpo tivesse sido encontrado somente a três dias, pois uma pessoa normal naquele estado avançado de decomposição, certamente teria morrido a pelo menos dois meses atrás. A pele enrugada, seca e escura era uma fina camada que envolvia os ossos. Os olhos ainda estavam em suas órbitas oculares, entretanto, com uma coloração branco leitoso onde deveriam estar a íris.Não havia sinal de atividades de vermes ou qualquer outro inseto em qualquer parte do corpo. O doutor nos apontou, logo que meu espanto inicial passou, uma mordida profunda entre o ombro e o pescoço da vítima. A mordida potente arrancara um pedaço da pele e o sangue já seco pintava de rubro escuro a região afetada. Numa primeira análise, não se parecia como uma mordida de coiote, bastante comum na região, ou de algum outro animal caçador. Para não dizer que fosse uma mordida humana, decidimos a princípio deduzir por um ataque de alguma espécie de símio, um bugio talvez, espécie de macaco bastante comum na região e de humor não muito amigável. Não conseguimos deduzir mais nada a partir do corpo, portanto, decidimos encontrar com o casal que esperava na recepção. Não era adequado interrogarmos os pais da vítima no local em que seu corpo se encontrava. Levamo-nos até sua casa e lá tomei seus depoimentos dos últimos acontecimentos.
“Delizete tinha dezoito anos e namorava com Daniel. Nunca gostamos do rapaz. Era um arruaceiro! Passava as noites na rua bebendo cerveja e ia trabalhar de ressaca capinando os pátios das pessoas. Estava tendo pouco trabalho nos seus últimos dias pois coisas estavam sumindo de dentro das casas. Certamente ele estava roubando, só não fazíamos ideia do por que, pois as únicas coisas com que ele gastava era com cerveja. Pedimos à nossa filha que não andasse mais com ele, mas ela, cabeça dura, disse que ele estava trabalhando bastante e economizando para viajarem juntos para Belo Horizonte e lá comprarem uma casa e terem uma nova vida na capital. Foi então, que a duas semanas atrás, ele sumiu. Torcemos para que ele jamais voltasse e deixasse nossa filha em paz. Ela só parou de chorar por aquele trapo de gente, um dia antes de sair de casa. Só pode ter sido ele quem fez isso com ela! Tirou ela de casa, a matou e fugiu para Belo Horizonte.”
A tristeza do casal em seu depoimento era comovente. Tínhamos agora um início para a investigação, Daniel Silva. Eu e o delegado fomos até a casa do seu pai, o viúvo Ulisses. Em um breve interrogatório descobrimos que nem ao menos o próprio pai de Daniel o suportava. Em seu depoimento, disse que o rapaz era um vagabundo, que só aparecia em casa para comer e às vezes dormir, passando normalmente as noites na rua. Daniel já dizia que estava economizando para se mudar para Belo Horizonte, ao que seu pai disse que não esperava a hora da partida pois já não bastasse ter matado sua mãe de desgosto, se continuasse mais um tempo naquela casa, ele também iria desgostoso para o túmulo. Ulisses declarou que teve um grande alívio quando soube que o rapaz tinha sumido a duas semanas atrás e não queria nem saber onde deveria estar, desejando esquecê-lo completamente e seguir com sua humilde e honesta vida.
Ao deixarmos a casa do senhor Ulisses, o delegado levou-me à pessoa que me contaria a tal lenda do Corpo Seco. Seguimos na viatura em uma estrada de terra e pedras, levantando uma torrente de poeira atrás de nós. O delegado disse que não chove a pelo menos a seis semanas e o calor dos últimos dias tem sido o pior dos últimos anos. Pensando comigo mesmo enquanto o delegado despejava palavras atrás de palavras, teorizei que um dos prováveis motivos de o corpo estar em avançado estado de decomposição poderia ser devido ao elevado calor que tem assolado a região. Entretanto, isso não explicava a ausência de vermes no cadáver.
Alguns minutos depois, chegamos à uma casa de pau a pique, distante a poucos quilômetros do centro da cidade, em um sítio bem cuidado, cercado ao norte e ao leste por um riacho de água corrente que, devido à estiagem, deveria ser normalmente um rio mais largo. Ao entrar na propriedade, observei que além do riacho, ela era cercada ao sul e a oeste com uma longa cerca de arame farpado, com toras cruas de madeira estacadas no chão a cada cinco metros. Notei, ao entrar pelo portão preso com arame, que em cada estaca de madeira da cerca havia pendurado um cordão com inúmeros objetos, pequenas pedras coloridas, estrelas trançadas de palha, pequenas figas entalhadas em madeira, dentre outras figuras cruas e artesanatos. No pequeno pórtico na entrada da propriedade, havia, preso com cordões e entrelaçados, galhos de alguma planta que já crescia aos pés das estacas do portão que exalavam um cheiro relativamente forte que podia ser sentido a alguns metros de distância.
Entramos pelo portão que foi novamente trancado pelo delegado. Ao nos aproximarmos da casa, de dentro dela surgiu um senhor negro de vestes simples e chapéu de palha. Seus poucos cabelos e curta barba branca me diziam que ele deveria ter perto de seus oitenta anos. Ele saiu caminhando em nossa direção, com um cigarro de palheiro fumacento na boca sorridente, enquanto estendia sua mão direita para nos cumprimentar. O delegado apertou alegremente sua mão, que logo foi direcionada para mim, que sem  cerimônias a apertei fortemente, num típico costume interiorano, enquanto sorria e me apresentava. O delegado explicou brevemente o motivo de nossa visita, ao que nosso anfitrião, cujo nome ao qual se apresentou era Sebastião, prontamente ofereceu sua ajuda e, devido ao horário próximo ao meio dia, convidou-nos para almoçar enquanto conversávamos sobre o triste acontecimento, e assim ele me contaria a lenda do dal Corpo Seco.
O almoço consistia em um feijão mexido com farofa, arroz, carne de charque cozida em panela de ferro e alguns vegetais provavelmente cultivados na propriedade. Um cardápio típico do interior, com tempero pesado e cheiro forte mas muito agradável. Lembrei da fome que estava pois não havia tomado café da manhã. Servimo-nos e fomos almoçar do lado de fora da casa, sob a fraca sombra de uma árvore com poucas folhas que certamente seria frondosa em períodos mais aceitáveis. Uma fresca brisa aliviava o calor da estação. Entre garfadas, o delegado narrou os acontecimentos a Sebastião, que ouviu atentamente, sem nenhuma repulsa pelas minuciosas descrições, algo que achei que aconteceria e seria normal com alguém não habituado aos horrores da morte. Sebastião, mesmo sendo um senhor idoso, mostrava tranquilidade e seriedade diante da narrativa do delegado. Ao final, quando o delegado explanava sobre nossas teorias, pediu para que Sebastião me contasse a história do Corpo Seco. O velho engoliu a carne que mastigava, descansou os talheres sobre o prato ainda pela metade, bebeu um pouco de água e respirou profundamente antes de iniciar sua obscura narrativa.
“O ano num sei ao certo. Só sei que quem mi contô essa história pela primeira veiz foi minha mãe, que na época ainda era uma menininha. Tinha numa fazenda aqui perto um fazendêro muito rico e muito pão duro. Ele era dono de vários escravo, incrusive minha vó e minha mãe, mas ela ainda era piquena pra trabaiá, mas já era inteligente pra zoiá e ouvi as coisa e dispois contá pros otros exatamente o que viu ou ouviu.
O fazendero era muito mau e tratava mal os escravo e a própria família. Quando ele bebia, ficava pior. Batia na muié e nos filho. Isso até era normal na época e as pessoa ficava quieta quando isso acontecia. Mas feio mesmo era ele bater na própria mãe.
Muitos escravo morreram por causo dele, espancado, com chicotada, com tiro, afogado, cortado, torturado. Mas na época os sinhô de terra podia fazê tudo que quisesse com os escravo porque eles eram deles. Muitos escravo foram enterrado por essas terra, quando eram enterrado e não simpresmente jogado por aí num buraco, numa caverna ou nos rio. Ninguém gostava do fazendero, mas pouca gente sabia que ele batia na mãe também.
O que se conta é que, numa noite, quando ele não gostô da comida que sua própria mãe fez pra jantá, ele bateu tanto nela que ela acabou morrendo, mas logo antes de morrê, ela jogou uma praga nele, dizendo que nem a terra ia querê ele e ele ia ficá vagando por aí pra sempre. Ele nunca deu bola pra isso, mas pru menos pra mantê o nome da família, ele enterrou o corpo da mãe no cemitério atrás da igreja, com uma lápide bem bonita. Mas o que adianta se nunca foi visitá o túmulo da própria mãe?
Uns mêis dispois ele ficô doente. Tinha febre, cansaço e num saía mais da cama. As pessoa que cuidava dele dizia que ele tinha umas mancha vermeia na pele, tossia, vomitava e num queria mais comê. Foi assim que ele morreu, sozinho e com muita dor por causo da praga que a mãe dele jogô nele.
Ele foi enterrado ao lado do corpo da mãe, atrás da igreja. Poucas pessoa foram ver, e ainda foram ver só pra ter certeza de que ele tinha morrido, tamanha a raiva que as pessoa tinha dele. Mas no outro dia pela manhã, o coveiro encontrou o corpo do fazendeiro no chão, em cima da própria cova. Ele avisou as autoridade que cavaram de novo, colocaram o corpo lá dentro e taparam o buraco. No outro dia, lá estava o corpo do difunto, deitado no chão, com a pele cada vez mais seca. Era como se nem a terra quisesse aquele corpo dentro dela.
O delegado da cidade, preocupado com o cheiro e com os verme que o corpo pudesse trazer, mandou seus funcionário levarem o corpo pra uma caverna perto dali. Era uma caverna onde mineiravam ferro, mas ela já num era mais usada e tava abandonada a muitos anos. Na entrada dela tinha um córrego de água corrente, que os policiais tiveram que atravessar, se molhando até a cintura, levando o corpo pra dentro da caverna. Eles deixaram o defunto lá no fundo e voltaram rápido antes que anoitecesse. Eles disseram dispois que quando estavam atravessando o córrego pra sair da caverna, começaram a ouvir gritos e gemidos vindos de lá de dentro. Saíram correndo e diz que nunca mais eles voltaram pra lá di tanto medo que tinham do fantasma do fazendeiro.
Inté hoje, as pessoa que passam perto da caverna dizem que ouvem os lamento do defunto do fazendeiro, que todos chamam de Corpo Seco”.
Admito que segurei meu humor para não rir de tal fantasiosa e absurda história. Certamente era mais um daqueles contos narrados para as crianças para obedecerem seus pais. Nunca ouvi relato nenhum de assassinatos relacionados a esse tal Corpo Seco e fiquei determinado a desvendar o mistério e desmistificar tal lenda. Quanta inocência minha! Ainda em minhas gargalhadas internas, olhei para o delegado que intercalava olhares sérios entre Sebastião e a mim. Naquele momento não entrava na minha cabeça que o delegado, o chefe da força policial do município, a voz da razão e da sabedoria daqueles humildes e iletrados cidadãos, mantinha um pingo de crença nesta lenda infantil. Ele não havia comido toda a sua refeição, enquanto que eu, séria e educadamente, terminei o meu almoço que, apesar de pesado e fortemente temperado, não me causou maiores problemas gástricos típicos de uma alimentação como aquela em um dia quente como o inferno foi aquele.
Sebastião contou mais algumas histórias de acontecimentos estranhos ocorridos nas últimas décadas, mas todas elas fantasiosas demais para que eu pudesse dar muita atenção. Decidi aproveitar a prosa de nosso anfitrião para lhe perguntar o que seriam aqueles penduricalhos na sua cerca e que planta era aquela que se erguia por sobre o pórtico da entrada de sua propriedade.
“Óia meu filho. Aqueles bejeto pindurado são patuás. São vários símbolo de proteção que eu mesmo fiz e coloquei em vorta da minhas terra. E aquela pranta lá é arruda. Serve pra ispantá mal olhado e todas as coisa ruim que quisé entra na minha popriedade. Eu sô um homi véio e já vi muita coisa nessa minha vida. Já vi que muita coisa ruim acontece com as pessoa boa. Eu sempre ajudo quarqué um que tivé em dificurdade. Benzo, rezo e protejo quem precisá, e por eu ser uma pessoa boa, os espírito do mal me querem. Por isso eu tenho que me proteger. E ocêis deve se protegê também porque se o Corpo Seco tá por aí, não é só com esse revórve que o sinhô vai consegui se safá dele”.
Sebastião levantou-se e caminhou lentamente para dentro de sua casa, deixando-nos ali fora, sentados e quietos, processando a informação. Talvez o delegado não tanto, pois poderia ainda estar pensando na fábula do tal Corpo Seco. O que me deixou pasmo foi o velho saber que eu estava armado, pois meu coldre e revólver estavam escondidos sob meu blazer. Mas logo minha surpresa de desvaneceu pois o velho, certamente uma pessoa sábia, saberia que eu, por ser um investigador da polícia, andaria armado por aí. Logo que cheguei à essa conclusão, Sebastião saiu da casa carregando cordões em sua mão. Entregou uma para o delegado e outro para mim.
“Usem essas medalinha pra se proteger. Enquanto esse bicho estiver por aí, ocêis vão precisá. Ele num fica de baixo da terra, mas ele num pode atravessá parede nem água corrente. Num adianta também dá tiro com essas arma. Ele pode até cair ou ficá mais lento, mas o que ocêis precisam mesmo são essas medalinhas”.
Definitivamente aquela foi a conversa mais estranha que eu havia tido até aquele momento em toda a minha vida. Para não fazer desfeita, coloquei a medalha no pescoço e agradeci pelo farto almoço. Sebastião levou-nos até o portão de sua propriedade, abraçou-nos falando palavras em uma língua que não entendi e por fim nos despedimos. Foi naquele momento que senti que havia realmente algo estranho naquela cidade, só não sabia que isso mudaria minha vida completamente.
Quando voltamos à delegacia, o cabo Magalhães nos informou que os pais da vítima já estavam em posse do corpo de sua filha e iriam realizar seu velório e enterro naquela mesma tarde. Programei-me então para fazer uma breve busca pela cidade à procura de indícios que me levassem a Daniel Silva, o namorado suspeito. Se tivesse sido ele o assassino, seria estupidez que ainda estivesse na cidade, mas como passou semanas desaparecido antes de efetuar sua última ação, poderiam existir traços de sua permanência na região, como cinzas de fogueiras, restos de comida ou outras evidências de acampamentos improvisados.
O delegado não pode me acompanhar na busca pois haviam muitos trabalhos burocráticos que ele deixara para depois enquanto tratava do caso da garota assassinada. Empenhei-me na busca solitária em todas as ruas, praças, casas abandonadas, bosques e qualquer outro lugar que pudesse servir de abrigo provisório para alguém que não quisesse ser avistado. Não obtive nenhum sucesso. Ao final da tarde, encamiei-me até o cemitério da igreja para observar o final da cerimônia de sepultamento da jovem.
Por alto, contei aproximadamente cem pessoas que cercavam a sepultura da jovem Delizete. Me aproximando entre os visitantes, consegui ver a descida do caixão até seu local de descanso. Foram ditas as últimas palavras e os pais da garota jogaram sobre o caixão, já no fundo da sepultura, uma rosa branca e o primeiro punhado de terra. As pessoas caminhavam até os pais prestando-lhes condolências e se retiravam para suas casas. Depois da história que ouvi de Sebastião, uma pequena intuição minha me dizia para permanecer ali até que a última pá de terra fechasse o buraco, para me certificar que, se por algum acaso acontecer de o corpo de Delizete fosse expulso pela terra, eu saberia se houvesse algum truque no momento em que o buraco fosse fechado.
Demorou quase uma hora até não haver mais buraco. Ali, em volta do retângulo de terra entre a moldura do gramado verde, restavam somente o coveiro, que dava as últimas pazadas em cima do monte de terra para que ela se assentasse, os pais da garota e eu. O fechamento do túmulo ocorreu como previsto, não havendo espaço para truques. Assim, prestei minhas condolências ao casal e saí, dirigindo-me à delegacia para informar ao delegado os acontecimentos da tarde e, logo depois, voltar ao hotel em busca de um chuveiro com água morna e uma cama confortável para meu merecido descanso.
Na minha cama, já depois de um refrescante banho e um café reforçado como jantar, não conseguia desviar meus pensamentos para longe da história que Sebastião havia me contado. Instintivamente, eu segurava a medalha que ele havia me dado. Era um disco de madeira, com cerca de cinco centímetros de diâmetro, com alguns símbolos entalhados nele. No meio havia uma estrela de seis pontas, que me remeteu à estrela de Davi. Em volta da estrela, na borda do disco, uma linha com sete pequenas esferas espalhadas visualmente equidistantes. no espaço entre a estrela central e a linha circular à volta, haviam sete pequenas cruzes, espalhadas aleatoriamente. Acima de uma das pontas da estrela, no que seria o topo do disco, um buraco dava passagem para o cordão que prende o amuleto em meu pescoço. O cordão, aparentemente de cânhamo fino, tinha um cheiro distinto, mas não forte, semelhante às arrudas do pórtico de Sebastião. Haviam também sete nós em espaços equidistantes pela extensão do cordão. Apesar do calor noturno e abafado com ao menos uma leve brisa, os pensamentos em volta do meu presente e de todo o caso de assassinato me fizeram dormir. Não sei se acordei diversas vezes durante a noite devido ao calor ou à intranquilidade que aquele caso estava começando a me contaminar.
Acordei no outro dia um pouco mais tarde do que o normal. O sol já havia nascido e eu ouvia galos e pássaros cantando pela janela, batidas rápidas e fortes na porta de meu aposento e a voz inconfundível do delegado Ferreira chamando meu nome. Levantei-me de pronto, da cama encharcada de suor, e o atendi abrindo apenas uma fresta da porta. O que ele me narrou fez eu fechá-la rapidamente em sua cara, tomar um rápido banho frio, vestir-me e entrar na viatura, acompanhando-o até o cemitério, tudo em menos de dez minutos. Ao chegarmos lá, confirmei seu relato: o corpo da jovem jazia no chão, em cima de seu túmulo, com a terra revirada como se alguém tivesse desenterrado-a, retirado o corpo do buraco, tapado-o novamente e deixado o corpo ali em cima, como numa brincadeira de extremo mau gosto. No mesmo instante, a voz de Sebastião ecoou na minha cabeça “o corpo do fazendeiro no chão, em cima da própria cova”. Tratei de expulsar tais devaneios de minha mente e tracei rapidamente um plano com o delegado de levar a interrogatório os pais de Delizete, o pai de Daniel e os amigos mais próximos do jovem e desventurado casal. Ordenei também novamente o enterro do corpo da vítima a fim de evitar mais olhos curiosos.
A manhã inteira foi destinada a interrogar todos que tinham ligação com os jovens. Perguntei sobre praticamente tudo de cada um deles, anotando todas as informações, importantes ou supérfluas, em meu caderno. Não havia nenhuma grande nova informação que pudesse ajudar no caso mas, aparentemente, após o fato de o corpo de Delizete ter amanhecido em cima do próprio túmulo, despertou um medo antes adormecido dentro dos cidadãos. Em todos os relatos que anotei, mesmo que fosse uma breve citação, todos os interrogados mencionaram o Corpo Seco como um provável culpado por todo o horror que veio atormentar o município.
Toda a história do casal, do corpo da jovem encontrado em cima de seu túmulo e o tal Corpo Seco e mais o maldito calor que começava a me irritar, me tiraram o apetite. Não tive vontade de almoçar e só comi um sanduíche e bebi um refresco para que não caísse desmaiado no meio da rua devido à uma insolação ou queda de pressão sanguínea. Eu precisava manter a minha saúde, física e mental, para resolver este caso detestável ao qual fui designado. Nunca fugi de um caso, nem nas piores e mais ameaçadoras condições! Não seria naquele momento que eu desistiria.
Após o leve almoço, decidi novamente procurar por pistas, no local onde o corpo da jovem foi encontrado e em suas imediações, por entre campos, florestas e estradas. Peguei emprestado com o delegado uma das viaturas, dirigi-me ao local e ali deixei o carro, seguindo meu caminho à pé em busca de algum rastro que pudesse me levar ao principal suspeito. Comecei observando o local onde a vítima foi encontrada e, enquanto procurava por pistas, lembrei-me do depoimento do velho Josefino, que relatou o farfalhar das folhas próximas e algum movimento por entre as árvores da floresta que margeia a estrada. Embretei-me por entre as árvores, tentando manter o foco à mínima pista que pudesse aparecer, seguindo por um caminho fechado e tortuoso.
Algumas espécies de árvores já estavam secando e se desnudando, mantendo algumas poucas folhas secas em seus galhos. Alguns troncos ressequidos já descascavam e qualquer pessoa com uma excessiva imaginação já conseguiria ver figuras disformes que tais troncos formavam.
Com pouco mais de uma hora de caminhada por entre a mata fechada, ouvi um fraco som de água corrente. Apertei um pouco o passo por entre galhos caídos e rochas antigas, provavelmente vindas das minas próximas à região, que a muito já estavam meio enterradas no chão. Saindo da mata fechada para um campo aberto, encontrei um fino córrego, provavelmente proveniente do morro ao norte, que deveria cortar o limite do município descendo por entre as matas e campos. A largura do que posso chamar de estrada de rochas, que provavelmente era o fundo do córrego, era de cerca de três metros, mas somente alguns centímetros de água escorria por entre as pedras e seguiam seu curso para o sul. Certamente a estiagem de seis semanas seria a responsável pela diminuição do nível da água. Ela, limpa e cristalina, resistia em um fino fio do que deveria ser um largo e, em alguns pontos, perigoso córrego, tornando-se, mais ao sul, um rio de pequenas proporções. Resolvi seguir a trilha do córrego pois se alguém fosse acampar na região, provavelmente seria próximo à água.
Foi a algumas centenas de metros que me deparei com o que seriam os restos de um acampamento improvisado. A cerca de cinco metros da margem jaziam galhos queimados em uma pequena área de terra entre as rochas do córrego e a floresta. Contudo, numa análise mais minuciosa, observei que a terra, junto com alguns dos galhos queimados e suas cinzas, estavam remexidos, como se pés tivessem se arrastado por todo o perímetro. Ali naquela parte do córrego, praticamente já não havia água corrente, escorrendo somente pequenos fios por entre as pedras. Observando mais ao longe, a cerca de quinhentos metros, na base de um morro não muito alto, havia uma formação de pedras, cujo o córrego passa bem à sua frente. No mesmo instante, lembrei-me do conto fantasioso narrado por Sebastião, sobre a caverna onde o corpo do fazendeiro havia sido deixado. Conjecturando a veracidade de alguns pontos da história de Sebastião, resolvi investigar o local.
A colina que subia em um ângulo baixo a oeste do córrego chegava, em poucas dezenas de metros, ao seu cume. Beirando o córrego, uma gruta cujas bordas da sua entrada certamente foram lapidadas para que fosse maior do que naturalmente era, marcava a entrada da antiga mina de ferro. A trilha de pedras lisas cuja principal função era ser simplesmente o fundo do córrego, pareciam também servir como um capacho de boas vindas, como uma soleira na entrada da gruta. Em época de chuvas regulares, certamente a água corrente passaria em frente à entrada da caverna, de modo que seria impossível entrar no buraco escavado naturalmente na rocha sólida sem se molhar ao menos até a cintura.
A entrada da mina media cerca de dois metros de altura por um e meio de largura, de formato retangular que formavam uma moldura na rocha crua esculpida desniveladamente. Decidi adentrar a caverna que, devido à estreita entrada, já escurecia-se quase completamente a cerca de dez metros de profundidade. O chão parecia ter sido trabalhado pelos antigos mineradores para que ficasse nivelado, utilizando-se de pedras e terra batida. Observando bem a terra solta no piso, mesmo com a fraca luminosidade, pude notar que havia um rastro que ligava a entrada da caverna com o seu interior, como se algo tivesse sido arrastado. Provavelmente algum animal tivesse trazido sua caça para seu abrigo. Instintivamente saquei meu revólver para garantir que nada me atacasse e me arrastasse para o interior ainda mais escuro daqueles corredores assustadores. Continuei o trajeto, seguindo a trilha de terra. Logo o chão começou a se inclinar para baixo e em mais poucos metros, uma bifurcação dividia o trajeto. Fiquei por alguns instantes pensando se tomaria algum caminho para seguir ou voltaria para a entrada e continuaria minhas investigações lá fora. Foi então que ouvi algo que me congelou a espinha. Lá de dentro, das profundezas de algum lugar que provavelmente um dos trajetos da bifurcação levaria, um longínquo gemido, misturando um sentimento de dor, agonia e tristeza, chegou aos meus ouvidos. Era um gemido longo e fraco que durou alguns poucos segundos, seguido de silêncio, e outro gemido, e outro silêncio, e mais um gemido. Não contei quantas vezes “aquilo” gemeu, mas o que posso garantir é que nenhum ser humano ou animal que eu conheço poderia produzir naturalmente tal som. Intercalei olhares entre uma passagem e outra da bifurcação, tentando distinguir de onde tal terrível e perturbador som deveria ter vindo, mas provavelmente aquela caverna seria um labirinto de corredores sombrios e era impossível saber de onde exatamente aquele agoniante som vinha. O que me acordou do transe foi um pequeno e quase inaudível som de pequenas pedras caindo, lá fundo obscuro de algum corredor. Em menos de dez segundos eu já estava em frente à entrada da caverna, do outro lado do córrego, suado e esbaforido. Uma pequena brisa bateu em meu rosto, refrescando-me brevemente e me fazendo olhar para o céu. Algumas pequenas nuvens flutuavam lá em cima, movimentando-se com o vento. Era a primeira vez que eu via nuvens desde que chegara aqui na cidade. Provavelmente era a primeira vez que haviam nuvens aqui desde a última chuva a mais de um mês. Ao norte, nuvens mais densas apareciam no horizonte.
Não havia notado que o tempo havia passado tão depressa e faltava pouco mais de uma hora para o sol se pôr. Refiz meu trajeto de volta, demorando quase uma hora com o passo apressado, chegando até a viatura que eu havia deixado na estrada. Quando cheguei ao centro da cidade resolvi, antes de devolver a viatura à delegacia, ir até o cemitério para garantir o enterro, que eu esperava que desta vez fosse definitivo, do corpo de Delizete.
Fui recebido pelo coveiro que me mostrou o túmulo da jovem. Além de terem enterrado o corpo, foi também construído uma lage de cimento para garantir que não houvesse outro ato de mau gosto de profanar o túmulo de uma vítima de um ataque tão hediondo. Eu estava certo de que isso não aconteceria novamente e tratei de me dirigir à delegacia para devolver a viatura e informar o delegado sobre a possível criatura que vive na antiga mina abandonada a leste do município.
Na delegacia, o delegado me recebeu e ouviu meu relato sobre minhas buscas. Notei seu olhar espantado quando falei sobre o que eu ouvira na caverna, entretanto ele disse que a décadas aquele riacho não secava tanto quanto nestes dias quentes e que conduziria buscas no interior da caverna assim que resolvermos ou arquivarmos o caso. Não gostei da citação de “arquivar” o caso. Eu estava ali para resolvê-lo e não sairia dali sem tal. Decidi não discutir com o delegado e dirigi-me para meu quarto no hotel.
Aquela noite parecia menos quente do que a noite anterior e eu podia ouvir as folhagens das árvores próximas à janela do meu quarto farfalharem com a leve brisa que batia. Mesmo com a brisa aliviando o calor, minha noite não foi tranquila pois, ainda perdido em meus pensamentos, tentando alinhar todas as pistas e evidências, ainda não tinha um caso concreto. Tudo o que eu tinha era uma história fantasiosa proveniente de décadas de boca à boca entre os cidadãos da região.
Entre seguidos sonos e despertares, assim como na manhã anterior fui novamente acordado pelas batidas na porta e a voz do delegado. Quando abri a porta para atendê-lo, a expressão de seu rosto demonstrava que algo abominável havia acontecido e, de algum modo, eu já imaginava o que seria. Ele me conduziu até o cemitério onde confirmei que ali, em cima do túmulo da jovem, jazia seu corpo, com a terra remexida sob si, além da lage de cimento quebrada em pedaços.
Eu não poderia explicar o que havia acontecido, se não conjecturar a possibilidade de vândalos, equipados com pás e picaretas, haverem vandalizado novamente o túmulo de Delizete. Eu, sendo um detetive da polícia de São Paulo, sabia mais que todos ali naquela cidade o que pessoas de má índole seriam capazes de fazer para os outros, até mesmo simplesmente por pura diversão.
Fiquei por alguns minutos ali observando o local em busca de alguma pista dos delinquentes que profanaram o túmulo da jovem, até que os seus pais chegaram, mas não tristes ainda pela morte de sua filha e sim assustados. Ao me virem ali, ao lado do túmulo, vieram em minha direção. Fiquei pronto para responder qualquer pergunta e realizar qualquer pedido deles, pois era o mínimo que mereciam. Entretanto, por mais estranho que possa parecer, fiquei ultrajado com o desejo deles ao qual pediram minha permissão. Eles pediram para que o corpo de Delizete fosse colocado na antiga mina de ferro. A mesma da história de Sebastião e que eu havia conhecido pessoalmente no dia anterior. Lembrei-me dos urros e gemidos vindos das entranhas da caverna e, por um instante, pensei em avisar ao casal sobre tal criatura que habita aqueles corredores sombrios e que poderia se alimentar dos restos mortais de sua filha. Entretanto decidi tentar persuadi-los a novamente enterrar sua filha no cemitério. Eu já imaginava sua resposta, de um povo simples e iletrado, que acredita em fábulas fantasiosas. Eles disseram que sua filha havia virado um Corpo Seco e que ela somente poderia descansar e deixar as pessoas daquele município tranquilas se seu corpo fosse deixado dentro da mina. Não pude contrariá-los, deixando o caminho livre para que fizessem o que bem entendessem com o corpo de sua filha.
O delegado fora informado de tal pedido e prontamente forneceu a caminhonete da polícia para o transporte do corpo em um novo caixão até o mais próximo possível da caverna, pois a estrada que leva até o local termina a cerca de quinhentos metros da entrada da mina, sendo necessário percorrer o caminho a pé.
Uma comitiva de familiares e amigos se organizaram para participar novamente do que eu acreditava ser um velório simbólico. Decidi acompanhá-los para observar se algum integrante da comitiva agiria de forma suspeita, podendo ser ele o responsável por profanar o corpo da jovem.
Os preparativos foram feitos durante a manhã, enquanto eu permaneci em meu quarto de hotel adiantando os rascunhos de meu relatório do caso. Enquanto escrevia, o quarto escureceu gradualmente. As cortinas da janela eram sopradas para dentro do quarto pelo vento da rua. As nuvens escuras e o vento prediziam que uma tempestade se aproximava. A queda da temperatura e o vento que soprava era um alívio para todos que sofreram tanto com aquele calor que assolou aquele município durante mais de um mês.
Almocei no hotel enquanto observava pela janela a chuva torrencial que caía. Imaginei o quão difícil seria percorrer o caminho até a caverna carregando o caixão, com todos os obstáculos que a floresta e a chuva podem providenciar juntas. Após o almoço, me uni à comitiva que se preparava para à peregrinação.
Eram quatro horas da tarde quando saímos do centro da cidade em uma fileira de dez carros, encabeçados pela viatura do delegado e seguida pela caminhonete que carregava o caixão de Delizete. Fui de carona com o delegado enquanto o Cabo Magalhães dirigia a caminhonete,seguido pelo carro dos pais de Delizete e uma fileira de carros com os familiares e amigos próximos.
Com a dificuldade da chuva e da estrada agora enlameada, demoramos cerca de uma hora para chegarmos na parte da estrada mais próxima da mina de ferro. As pessoas se organizaram para carregar o caixão por um caminho acidentado entre as árvores, um caminho que antigamente poderia ter sido utilizado como estrada que conduzia até a mina, mas que desde seu fechamento fora esquecida e agora plantas e árvores já haviam há muito nascido e crescido em sua extensão.
Percorremos os quinhentos metros em quase duas horas, devido à dificuldade de se caminhar em terreno tão acidentado e às trocas de carregadores do caixão. Cerca de trinta pessoas compunham a comitiva que, perto das sete horas da noite, quase já escurecendo, chegou à entrada da mina.
O que no dia anterior era um tapete de rochas lisas que se estendia de norte ao sul passando em frente à entrada da caverna, agora era um riacho com águas rápidas de quase quatro metros de largura entre uma margem e a outra. Seis homens carregaram o caixão pela forte correnteza do córrego, dentre eles Douglas, o pai da jovem, e Ulisses, o pai do namorado encrenqueiro, cuja presença ali era tanto para prestar suas condolências por Delizete como um pedido de desculpas pela criação de um filho irresponsável, principal suspeita do assassinato da jovem. Eu e o delegado acompanhamos de perto, prestando assistência caso alguém perdesse o equilíbrio. A violência da água, que chegava quase à nossa cintura, resultava da descida do córrego desde o morro ao norte, cuja nascente certamente foi alimentada pela forte chuva que ainda nos abatia, agora até em menor intensidade.
Entramos na caverna com dificuldade devido à estreita entrada, mas conseguimos carregar o caixão até alguns metros adentro, iluminados pela lanterna do delegado. Eu ajudei a carregá-lo nos últimos metros até que chegamos na bifurcação que eu havia visto no dia anterior, quando o delegado e o pai de Delizete resolveram deixar ali, diante dos dois caminhos, o caixão da jovem. Eu, mesmo contrariado com tal decisão, aceitei em respeito a Douglas. Descemos o caixão ao chão e senti que sua barra lateral para carregá-lo, prendeu em minha roupa, dando um leve puxão. Larguei o caixão e alinhei novamente meu blazer. Ficamos ali alguns instantes prestando nossos respeitos até que o delegado ordenasse nossa retirada. Eu fiquei em último na fila indiana para sair da caverna, deixando que todos saíssem antes de mim e eu pudesse me certificar de que ninguém violasse novamente o corpo.
Um por um, os homens atravessaram o córrego. A chuva continuava, aumentando sua intensidade. As pessoas que compunham a comitiva já se retiravam, retornando pelo trajeto feito para chegarmos até ali. Eu os acompanhei, sempre certificando-me de que ninguém ficaria para trás. Por alguns poucos metros de caminhada, tive uma sensação estranha, um nervosismo ou uma intuição de que algo não estava certo, ou estava me faltando. Tateei-me em busca de meu revólver e o senti em meu coldre sob meu blazer. Procurei minha carteira e a encontrei no bolso interno de meu blazer, assim como minha identificação policial. Havia alguma coisa faltando. Tateei meu peito e senti falta do medalhão que Sebastião me presenteou. O meu nervosismo aumentou, como se aquele medalhão fosse alguma droga e eu já demonstrasse os primeiros efeitos de sua dependência. Avisei o delegado que deixei cair algo na caverna e voltaria rapidamente para buscá-lo, mas pedi para que não me esperassem na chuva e seguissem logo seu caminho até os carros. Ele me entregou sua lanterna pois os fracos raios de sol daquele horário já eram ofuscados pelas densas nuvens escuras da chuva. Agradeci e fiz o caminho de volta à caverna.
Chegando diante da entrada da mina abandonada, atravessei novamente a forte correnteza do córrego e adentrei o escuro corredor, observando cuidadosamente o chão em busca do medalhão. Quando cheguei em frente ao caixão, ainda fechado e lacrado, vi, sob ele, meu medalhão com o cordão arrebentado. Peguei-o, coloquei no bolso e fiz meu caminho de volta.
A escuridão da floresta era assustador, e mesmo com a chuva forte, tentei apertar o passo o máximo possível, tomando cuidado para não tropeçar em nada e não me machucar.
Todo o meu estranho relato culminou neste perturbador acontecimento, naquela floresta maldita, sob a forte chuva torrencial que expurgava a seca, o calor e todos os males, lavando meu corpo e minha alma. Demorei meses para recompor o máximo possível minha sanidade após esta noite, mas não por causa da simples escuridão ou da forte chuva. Enquanto estava caminhando pela trilha, cuidando para desviar das pedras, raízes e galhos que estavam em meu caminho, raios começaram a cair e algo pesado caiu em cima de mim. Uma criatura me atacou e me fez cair no chão enlameado, fazendo minha lanterna cair adiante e deixando-me com uma fraca luz que me ajudou um pouco a ver, logo que consegui me virar para cima, as feições de tal abissal demônio. Os olhos brancos leitosos no meio daquele rosto escuro e enrugado, como a casca de uma velha árvore, me fitavam. Não haviam íris nos olhos, mas mesmo assim eu sentia que aquela besta me olhava profundamente. Eu comecei a me debater, mas a criatura tentava segurar meus braços entre rosnados e guinchos. Quando pensei em gritar, sua mão dura e fria apertou meu pescoço, deixando meus gritos baixos e cada vez mais com falta de ar. Tentei virar meu corpo para os lados a fim de desequilibrar a criatura. Ela pendeu para minha esquerda, quando consegui alcançar meu revólver e desferi três tiros em seu peito, fazendo-o cair de costas no chão. Os sons dos tiros se perderam em meio aos trovões. Tentei gritar para Magalhães, mas eu ainda cambaleava tentando recuperar o ar. Em instantes, a criatura já estava novamente em pé e correndo em minha direção. Desferi mais três tiros que acertaram alguma árvore ao fundo, o peito da criatura e sua perna, que o fez tropeçar e quase cair. Assustado, não consegui correr, ficando paralisado de horror diante de tal bestialidade. O demônio, impressionantemente, deu um longo salto, conseguindo me alcançar e me agarrar. No meu breve vislumbre que tive da criatura, não me pareceu que fosse alto, mas era magro. Muito magro. Quase como se um esqueleto estivesse usando alguma roupa apertada e enrugada sobre seus ossos. E seu peso era muito menor do que de uma pessoa normal, fazendo juz à sua forma esquálida. A criatura me agarrou e perdi novamente o equilíbrio, caindo de costas no chão e derrubando meu revólver, já sem balas no tambor. As mãos duras e frias novamente apertavam meu pescoço e já comecei, mais uma vez a ficar sem ar, quando, como um dos raios que caía no céu, lembrei-me do medalhão que Sebastião havia me dado. Alcancei-o no meu bolso, fechei-o entre minha mão direita, levei-a até o rosto da criatura e o encostei, no meio da sua testa. O grito indescritível de uma criatura que poderia habitar somente os sonhos mais sórdidos do mais doente louco, ecoou pela floresta. O monstro caiu mole e em espasmos no chão, com o medalhão preso em seu rosto. Instintivamente coloquei-o sobre meu ombro e, por algum motivo inconsciente, fiz o trajeto de volta à caverna, passando pela correnteza do córrego e deixando ali o corpo espasmático da besta. Peguei novamente meu medalhão e saí correndo da mina abandonada, deixando a criatura ali, de volta em sua escura e maldita residência.
Corri rapidamente pela trilha entre a floresta até que me deparei com o delegado Magalhães, com arma em punho e a lanterna. Ele disse-me que entre os trovões, pareceu ter ouvido tiros, e logo mais um grito de alguma criatura que ele jamais vira ou ouvira. Eu disse que não havia tempo para conversarmos e deveríamos voltar logo para os carros e para a cidade. Chegamos aos carros e nos dirigimos ao meu hotel. Lá, enrolado em toalhas e cobertores e aquecido com um café preto bem forte, descrevi ao delegado e seu assistente o que me ocorreu. Falei do demônio que me atacou, sua resistência às balas, sua fraqueza ao meu medalhão e seu novo paradeiro. Ambos me olharam assustados, pois a antiga lenda do Corpo Seco se provou ser real, e o que restava a eles agora era manter a segurança da cidade e se certificar de que a criatura jamais saísse de sua sombria morada.
Eu retornei para São Paulo e entreguei o absurdamente fantasioso relatório ao Capitão Siqueira que, diante de tal afronta à sua autoridade, arquivou o relatório e me deu um mês de dispensa remunerada para visitar psicólogos ou psiquiatras que pudessem me ajudar a entender que nada daquilo havia acontecido e que eu poderia passar pelo ridículo caso continuasse narrando tal história.
Jamais encontraram o corpo de Daniel, o jovem namorado de Delizete. Acredito que ele tenha sido também atacado pela criatura e agora, junto com ela e sua jovem namorada, descansam na escuridão de eterna noite da antiga mina abandonada.
Mas sei que nada daquilo é fantasioso. Mesmo agora, atrás desta mesa de escritório, aprovando e reprovando licitações em um serviço burocrático e entediante, mesmo com os inúmeros remédios que tomo todos os dias, sei que tudo o que passei foi real, e torço para que ninguém mais passe por dificuldades iguais as que tive, ou que ninguém sofra o mesmo destino infeliz que a pobre Delizete sofreu.